Um dia na vida da única fábrica ocupada do País



Os grifos são por minha conta...

Trabalhadores da Flaskô, em Sumaré (SP), com jornada semanal de 30 horas, lutam pela estatização da empresa

Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o comando do Brasil em 2003. Naquele ano, os funcionários da Flaskô – uma fábrica de tambores plásticos usados para fins tão diversos quanto o de acondicionar combustível para automóveis ou tripas de bois – também tomaram o poder, ainda que em uma escala menor: eles assumiram as rédeas de sua própria empregadora. Era para os destinos de Lula e dos trabalhadores terem se cruzado.



Latão para coleta de lixo reciclável na sede da Flaskô, a única fábrica ocupada do País sob controle dos funcionários
Foto: Theo Ribeiro / Fotoarena
Latão para coleta de lixo reciclável na sede da Flaskô, a única fábrica ocupada do País sob controle dos funcionários
A crença era que Lula, o ex-metalúrgico, daria um norte definitivo para a vida profissional dos trabalhadores da problemática Flaskô, ocupada pelos funcionários na sequência de uma série de traumáticas adversidades, entre as quais o recorrente atraso de salários e o não-cumprimento de direitos trabalhistas. Tudo se resolveria no governo Lula, criam os funcionários.
A era Lula passou, e a Flaskô é hoje a única empresa ocupada do País sob o comando de seus funcionários – transmutados em patrões. Filhote do mesmo grupo que deu origem à Tigre, a fábrica, localizada em Sumaré (SP), a 120 quilômetros de São Paulo, vive hoje entre o sonho de ser estatizada e o receio com o aperto em suas finanças cotidianas.
“A conta fica sempre no vermelho”, diz Fernando Martins, membro da comissão que comanda a fábrica. Uma das despesas sagradas é a com a conta de luz – em torno de R$ 60 mil mensais –, e por motivo óbvio: em uma empresa endividada, com um histórico problemático e carente de recursos, o corte de luz interrompe a fonte de receita imediatamente. A Flaskô já enfrentou interrupções de fornecimento de energia, uma delas por 40 dias.
"Ninguém fica em cima"
A tensão com um prosaico corte de luz contrasta com algumas das manifestações otimistas dos trabalhadores da empresa. “Tem esperança, sim. A gente sempre tem esperança”, diz a operadora de máquinas Tânia Gomes de Oliveira sobre uma eventual reviravolta no caso da Flaskô. Tânia, que chegou à companhia em 1993 – e pode, portanto, comparar a vida pré e pós-ocupação –, afirma que hoje “a vida é mais tranquila. Ninguém fica em cima”.

Foto: Theo Ribeiro / FotoarenaAmpliar
"Aqui não tem patrão, não tem chicote", diz Ivan Soares de Oliveira, operador de máquinas
Flaskô integrava um conglomerado de empresas que, por sua vez, fizeram parte do grupo criado por João Hansen Júnior, fundador da Tigre. Algumas empresas do grupo, entre elas a Cipla, conhecida fabricante de assentos para vasos sanitários, foram invadidas entre 2002 e 2003 como forma de pressionar os controladores a pagar salários e encargos trabalhistas, sempre em falta. Em Joinville (SC), onde ocorreram as outras invasões, as fábricas estão hoje sob intervenção judicial. A Flaskô é a remanescente entre as ocupadas.
A jornada atual é de 30 horas semanais, preenchidas de segunda a sexta-feira. Os 63 trabalhadores da Flaskô se dividem em três turnos por dia, que começam à meia-noite, às seis da manhã e ao meio-dia.
“Esta vai ser minha última empresa. Com fé em Jesus”, diz o operador de máquinas Ivan Soares de Oliveira, há quatro anos na Flaskô. “Aqui minha vida é melhor: não tem patrão, não tem chicote”.
A falta de dinheiro é parte do cotidiano da fábrica. Os salários às vezes atrasam uma semana, mas o atraso não é regra. Ocasionalmente também atrasa o pagamento dos fornecedores de matéria-prima (atualmente, toda comprada de empresas que reciclam a resina utilizada para a fabricação dos tambores; o material reciclado é mais barato que a resina “virgem”). As máquinas, obsoletas – e, em parte, fora de operação por falta de dinheiro para reparos –, têm produtividade até três vezes menor que de uma nova.
A empresa chegou a receber matéria-prima subsidiada em 2007, em um acordo entre o governo da Venezuela e as fábricas ocupadas. Já não há mais essa alternativa. Como há dificuldade para a compra de insumos, a Flaskô não forma estoques de matéria-prima: as compras são feitas à medida que chegam os pedidos dos compradores de bombonas plásticas. E o comércio não é homogêneo ao longo do ano: a receita mensal é de cerca de R$ 500 mil, mas em 2010, teve mês que rendeu R$ 600 mil, mas teve mês que deu R$ 350 mil.

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Aldemir Pontes, o gerente comercial: sonho de voltar para a Bahia e, quem sabe, montar lá "uma nova Flaskô"
Confiabilidade
“A ocupação foi a única saída”, diz Aldemir Tavares Pontes, que entrou na Flaskô antes da ocupação de 2003 na função de ajudante de caminhão, passou a ajudante de serigrafia e por outras funções até assumir o posto atual de gerente comercial. É dele a responsabilidade de fechar os contratos de compra de matéria-prima e venda da produção.
O gerente comercial atesta que os problemas da Flaskô afugentam alguns potenciais clientes (“tem esse problema de confiabilidade”, diz), mas isso não impede o fechamento de novos negócios. Pontes, baiano de Vitória da Conquista, onde trabalhou em padaria, faz planos, ainda não totalmente claros, de voltar para sua terra. “Vamos ver como vai ser. De repente monto uma Flaskô lá”, afirma.
Como a Flaskô é gerida pelos trabalhadores, as decisões têm que ser homologadas em assembleia. Uma comissão de fábrica também se reúne para deliberações cotidianas, em uma sala ornamentada por artigos como uma bandeira do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um calendário com a foto do presidente da Venezuela, Hugo Chávez – que talvez valha mais pela imagem, já que o calendário é de 2008 – e adesivos da Esquerda Marxista, corrente política do PT ao qual está ligado o braço brasileiro do Movimento das Fábricas Ocupadas.
À assembleia dos trabalhadores cabe a tarefa de escolher as alternativas de sobrevida da Flaskô. O governo federal já sugeriu que os trabalhadores criem uma cooperativa para tocar a fábrica, mas eles argumentam que, com isso, perderiam direitos trabalhistas que não foram honrados pelos antigos patrões. Preferem, em vez disso, a estatização, sob o argumento de que mais de 80% das dívidas da empresa, de estimados R$ 200 milhões, são com a União – com a estatização, o governo garantiria, portanto, o recebimento do que é dele.

Foto: Theo Ribeiro / Fotoarena
Detalhe da decoração em uma das salas da Flaskô
“Para mim, estatizar significa dividir com toda a sociedade os prejuízos da má gestão dos antigos proprietários”. Com esta frase, publicada na coluna semanal “O Presidente Responde”, reproduzida por jornais de todo o País, Lula, em janeiro do ano passado, frustrou a esperança dos defensores da estatização. No texto, ele voltava a defender a proposta de criação de uma cooperativa.
Lula estava a par dos problemas dos funcionários de Cipla, Interfibra e Flaskô desde sua campanha presidencial de 2002. Assumiu a presidência, saiu dela, e, na Flaskô, o impasse segue. “Mas vamos ver. Agora tem uma mulher no poder, né?”, diz a operadora de máquinas Tânia Oliveira.



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